Verdade dos fatos ou fatos alternativos? É evidente que a nossa imprensa perdeu muito em qualidade nas últimas décadas. Alguns jornalistas saem em defesa de suas reputações e levantam teses para justificar o inegável processo de destruição da profissão: politização das informações, militância ideológica, crítica conservadora, coerção e manipulação passiva dos agentes do mercado de capital; e tem sobrado até para os meios digitais como culpados pela descredibilização da profissão. Sobre esse último ponto, é verdade que hoje em dia basta ter uma conta no Facebook, Instagram ou Twitter para levantar sua própria tribuna.
Falando em “verdade”, em 2019 numa aula de Teoria e Metodologia da História, eu e meus colegas acadêmicos discutimos um artigo do cientista político conservador João Pereira Coutinho publicado na Folha de S. Paulo, trazido pelo então professor Augusto Moretti. Com o título “Brincando com a Verdade” e o subtítulo “O discurso pós-moderno”, o colunista Pereira Coutinho criticava de forma cômica a recolocação ideológica do uso dos fatos alternativos em lugar da verdade dos fatos, mas agora por figuras políticas conservadoras. Não se inquiete. “Fatos alternativos” é apenas a nova semântica da velha gramática do relativismo. Quando não existe uma verdade dos fatos – uma realidade objetiva a ser investigada, descoberta e escrita nas folhas de um jornal – o que restam são narrativas relativas, ou… fatos alternativos.
Eu ouço a pergunta: Há uma crise no jornalismo? Se há, ela tem origem exatamente aqui, no discurso jornalístico pós-moderno de que tudo é mera narrativa subjetiva. Esqueçam os políticos, a militância, os conservadores e o mercado. Quem está destruindo a profissão jornalística é o próprio jornalismo pós-moderno – e os jornalistas – que, ininterruptamente considera a “verdade” um conceito preconceituoso, exclusivista e reducionista, não passando de uma quimera. O resultado é que, para nós leitores de jornais - e, invariavelmente para os editores e redatores de jornais - o que resta são as múltiplas verdades que a múltiplas subjetividades podem produzir. Não se espante ao ler isso, mas a nossa conclusão inescapável é que o defeito jornalístico mais notável no século XXI – responsável pela decadência da imprensa – é a realidade de que, para o segmento público responsável por separar a verdade dos fatos das mentiras bem maquiadas, só existem “fatos alternativos”. Nem mentiras, nem verdades… apenas fatos alternativos.
À primeira vista, a linguagem dos “fatos alternativos” pode soar inteligente, ou até mesmo compassiva com as várias perspectivas de vida. Quem não se emociona ao ler as palavras escritas de George Orwell (1903-1950), onde defende que “(...) cada um tem o direito de dizer e escrever o que julga ser verdade, conquanto que aquilo que diz ou escreve não seja inequivocamente nocivo para o restante da comunidade”? Mas, ser emocionante, soar inteligente ou mostrar traços de compaixão não tornam uma mentira menos prejudicial somente por ser dita sobre o pretexto da estrita liberdade de expressão ou do subjetivismo. Para a mentira velada do jornalismo pós-moderno só existe uma alternativa: o fato; a verdade, a reforma!
Quando um aspecto da criação de Deus é deformado pelo pecado – no caso do jornalismo pós-moderno, pela mentira – não somos ensinados a abandoná-lo como está ou ainda recriar esse aspecto a nosso bel prazer. Somos ensinados a reformar, a reorientar, a trazer de volta ao seu estado original e querido por Deus, orientado pela Escrituras. Essa é a base do pensamento teológico reformacional ou reformado. Se a mentira – mesmo que com outra nomenclatura – tomou conta da informação midiática, somos ordenados a “(...) abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo.” (Ef 4.25). Essa aplicação bíblica à esfera jornalística pressupõe a existência da verdade dos fatos, e não fatos alternativos. Particularmente, creio que ninguém melhor expressou essa busca por uma aplicação bíblica e integral da área jornalística do que o calvinista holandês Abraham Kuyper. Nascido em Maasluis, Rotterdam, em 29 de Outubro de 1837, e falecido em 8 de Novembro de 1920, Kuyper ficou conhecido pela sua paixão em buscar fazer presente em toda a vida pública – seja na mídia, na educação ou na política – a contribuição e os valores cristãos.
Para Kuyper, o que havia a ser investigado, registrado e publicado por um jornalista eram verdades objetivas sobre a realidade. Essa crença fundamental na realidade objetiva a ser encontrada, declarada e vivida o levou a usar os meios de comunicação de sua época com fervor e dedicação. Kuyper foi um grande jornalista, um redator apaixonado, que, por crer numa verdade absoluta, não transigiu com os apelos do relativismo e nos transmitiu um profundo legado de fazer conhecida a glória do Deus Único e Verdadeiro nos vários setores da vida humana, inclusive na redação. Afinal, somente um jornalista que crê existir uma diferença fundamental entre fatos e boatos pode ser capaz de lutar aproximadamente pela vitória da verdade! Numa visão jornalística que só há fatos alternativos - a visão que impera hoje nos cursos de jornalismo e nas redações - não há nenhum valor ou diferença entre investigar e não investigar.
Kuyper, nessa luta pela verdade na área jornalística, destacou-se como um importante e prolífico editor. Dirigiu as edições do diário holandês De Standaard [O Estandarte] (1872-1876 e 1878-1919) e do semanário De Heraut [O Arauto] (1878-1919). Segundo os escritores Philip G. Ryken e James M. Boice, “(...) as duas publicações eram escritas segundo o ponto de vista da teologia reformada. Além de uma meditação bíblica semanal, ele [Kuyper] escreveu artigos e editoriais sobre religião, educação e vida pública. Foi por meio dessas colunas – quase vinte mil no total – que Kuyper ensinou os cristãos a responderem às questões nacionais, por conseguinte, alcançando uma influência profunda na cultura e na política holandesas.” O jovem professor de Filosofia, Rev. Pedro Dulci apontou para um fato notável na vida de jornalista reformado de Kuyper: “Como o editor-chefe de ambas as publicações, Kuyper escreveu editoriais durante quarenta e sete anos ininterruptos!”.
De onde Kuyper extraiu tanta paixão pela escrita? Penso que da crença na realidade de uma verdade. Todo esse trabalho e zelo de Kuyper por um jornalismo fiel à verdade sucedeu à sua crença de que existe uma diferença entre verdade e mentira, verdade dos fatos e fatos alternativos. Se, a priori, o jornalista vier a abraçar o relativismo em rebeldia à verdade objetiva de Deus, as consequências serão devastadoras, ao ponto de não mais poderem fazer a distinção entre um sussurro e um grito. Por fim, devemos lembrar da posição moral que o jornalista tem que enfrentar. Não existe neutralidade aqui. “Os seres humanos” conforme escreveu Kuyper “enfrentam a escolha de submeter-se à vontade de Deus ou seguir sua própria vontade, e essa escolha tem implicações em tudo o mais que pensamos e fazemos.” O jornalismo reformacional assume a soberania de Deus também na área informativa, e busca compreender a verdade e seguir a vontade de Deus para falar apenas a verdade.