Toda profissão possui um material básico para nortear o trabalho, para aplicar seus métodos e para colher resultados. Por exemplo: o químico trabalha e estuda a composição e as propriedades de uma determinada matéria e atua no desenvolvimento de novos materiais, aplicando testes de qualidade em produtos. O matemático tem números, dados, quantidades, estruturas, espaços, modelos e mudanças para aplicar formas de cálculo e obter resultados.
Estes são, digamos assim, os documentos - os materiais básicos - de algumas ciências. E quanto à ciência da história, qual é o seu documento? Partimos do pressuposto que a História enquanto disciplina é uma ciência, com elaborações teóricas e métodos analíticos para se chegar a resultados mais precisos possíveis a respeito da vida do homem no tempo e no espaço. A descoberta dos Annales é que os documentos dessa ciência riquíssima podem ser encontrados em qualquer lugar, literalmente.
Vejamos isso melhor. Jacques Le Goff (1924-2014), foi um profícuo historiador francês, conhecido como um grande medievalista. Era membro da famosa Escola dos Annales - movimento historiográfico do século XX - e dedicava-se à antropologia histórica. Isso era evidenciado pelo seu trabalho sobre as mentalidades. Além disso, Le Goff contribuiu muito para a produção da ciência da História com conceitos como “Documento” e “Monumento”, encontrados em sua obra História e Memória, publicada em 1988 e que reúne outros diversos ensaios interessantes do autor. É dele também que tiramos a compreensão de que o campo documental da história é mais amplo do que se pensa comumente.
Em primeiro lugar, Le Goff, embebido da tradição dos Annales, vai defender que a ciência da História é dependente de certo tipo de material, isso é, “(...) a história não teria sido possível se este último (passado) não tivesse deixado traços”; e, em segundo lugar, é a estes traços que Le Goff entende como os “Monumentos”, uma espécie de suporte geral da memória coletiva, que nos deixa, não somente em forma de textos e demais estilos literários, mas também através de objetos, corpos, músicas, artes, arquitetura, engenharia; a expressão da “arte e vida” do que já se foi. Em terceiro lugar, entendemos melhor essa noção ampla de documento em Le Goff a partir da diferença de compreensão entre os Annales e os Positivistas na discussão a respeito de documento e/ou monumento.
Enquanto os Annales e Le Goff defendem que tudo - desde um par de chinelos até uma carta em um garrafa de vinho boiando no oceano - pode ser um documento, os Positivistas pensavam ser documento somente aquilo que era registrado de forma escrita. Para os Annales, um cachimbo pode ser um documento, que enquanto não recebe a devida atenção ou “toque” de seleção e análise detida do historiador permanece como “monumento” da herança do passado.
Porém, a partir da separação e uso metódico feita pelo historiador, o cachimbo também se torna em matéria prima para a produção histórica, em documento; “os documentos” disse Le Goff, é a “escolha do historiador.” Os positivistas pensavam diferente assim muitos arquivistas modernos ainda pensam como eles.
Fustel de Colanges (1830-1889) historiador francês positivista entendia, como a maior parte dos historiadores de mentalidade positivista, que vale a assertiva “documento=texto”, ou seja, que a escolha do historiador naquilo que usa como objeto de investigação deve estar pautada na premissa de veracidade objetiva de textos, leis, cartas, fórmulas e crônicas. Por exemplo: para os positvistas, não importa se há uma descoberta de uma senzala em pleno funcionamento no final do século XIX, o que importa é que na lei, em registro escrito e oficial, a escravidão foi nacionalmente abolida no Brasil a partir de 1888.
Isso é análise positivista, que ignora a amplitude do conceito documento e o circunscreve apenas a textos frios e reducionistas da riqueza da realidade. Isso, posteriormente, resultou numa ausência de crítica documental por parte dos positivistas. Com a chegada da Revolução Documental em 1929 pela Escola dos Annales, a grande e famosa premissa positivista encontrada no prefácio à obra coletiva L’histoire et ses méthodes, de Samaran de que “Não há história sem documentos” foi posta em cheque pelos Annales, na pessoa de Lucian Febvre (1878-1956) quando escreveu em resposta: “Não há história sem problemas!”.
Isto é, que primeiro, monumentos (entenda-se em seu sentido amplo) também são fontes de vestígios de memórias passadas e muito importantes à construção da narrativa histórica, e que depois, os textos não devem ser aceitos somente pelo ônus de ser um texto oficial, mas deve passar por uma crítica e exame especial, por uma problematização.
Resumindo, esses são os dois legados dos Annales para a construção de uma ciência da História: ampliação do conceito de monumento como tudo o que o homem produz no tempo e espaço, especificação do conceito de documento como a aplicação de teorias e métodos em qualquer monumento separado (abstractio) pelo historiador e a crítica textual contextualizada pelos demais vestígios históricos, ou para usar as palavras de Marc Bloch, através dos “materiais fornecidos por gerações passadas.”